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Fala-me, Musa, ἄνδρα πολύτροπον

  • Paulo Diego
  • 17 de jan. de 2017
  • 4 min de leitura

Odisseu é um dos heróis mais conhecidos da literatura: Todos nós, direta ou indiretamente, já ouvimos falar dele. Quem nunca teve que enfrentar uma “odisseia” da integração para UFPB no horário de pico entre 18:00 e 19:00 horas? Existem diversos mitos que envolvem esta personagem, e aqui vamos nos deter à versão contida num dos textos fundamentais de nossa área e da literatura ocidental, a “Odisseia” da autoria de Homero, ou dos Homeros – até hoje não se sabe ao certo.


Do nome grego1 têm-se o nome Ὀδυσσεία, título cunhado posteriormente e consagrado pela tradição mas que de fato não pertence a obra. O iota, nome da letra grega “ι”, quando usado como sufixo, atribui à palavra um sentido de algo relacionado à coisa a qual se refere: Odisseia, relativo a Odisseu ou sobre Odisseu. Daí a explicação para o título que faz referência ao aspecto literal da obra. Um exemplo expressivo desse uso são as festas Dionisíacas, importantes celebrações que ocorriam em Atenas em honra ao deus Dioniso (sem iota, que em português passou como a letra –i-), que incluíam várias celebrações representativas das atribuições associadas ao deus e eram um símbolo da pólis2 grega. Odisseia de


Odisseu ou Odisseia do ἀνήρ? Nosso herói foi aquele que da deusa Calipso na ilha de Ogigia, em algum lugar do ocidente em relação à atual Grécia, para construir uma embarcação, recebeu “um grande machado, bem ajustado às mãos, brônzeo e afiado de ambos os lados, com um belo cabo de oliveira, que estava fixo de modo seguro”. Indicado pela deusa, encontrou “o caminho [...] onde cresciam altas árvores: álamos, choupos e pinheiros tão grandes que chegavam ao céu; árvores secas, que flutuariam facilmente [...] Ulisses cortou a madeira e rápido lhe correu o trabalho”.


Construiu uma embarcação “equivalente ao tamanho de uma ampla nau de carga torneada por um homem entendedor de carpintaria” e, ao partir, “sentou-se e com o leme dirigiu a jangada de modo competente [...] enquanto olhava as Plêiades, para o Boieiro [...] e para a Ursa [...] Era esta a constelação que lhe dissera Calipso [...] que mantivesse do lado esquerdo enquanto navegava [...] e ao décimo oitavo dia apareceram as montanhas sombrias da terra dos Feaces”.


Os belíssimos versos 234-280 do Canto V citados acima descrevem a saída de Odisseu de uma ilha misteriosa e longínqua, em que abunda a natureza silvestre (ver versos 55-75 do mesmo canto), um lugar bucólico além das fronteiras do mundo cotidiano. Minhas impressões diante de tais versos me levam a enxergar não Odisseu com um machado na mão, mas a habilidade humana de manusear um machado, a mão que o segura e o direciona, o braço que o levanta e o lança por entre a madeira que o intelecto analisou, separou e escolheu para o corte preciso do metal, o intelecto que projetou a madeira bruta em embarcação e o braço e a mão que a transformaram na prática.


Minhas impressões me levam a enxergar a destreza mental capaz de perceber a recorrência da posição das estrelas no céu noturno, capaz de identificar que a constelação da Ursa maior sempre indica a direção norte e que mantê-la à esquerda significa navegar para o leste de volta para Ítaca (cidade natal de Odisseu). A habilidade do autor nestes versos em minha opinião consiste na fusão da figura particular do herói mitológico, Odisseu, de caráter astucioso e estratégico, que usa em maior proporção o intelecto em detrimento do instinto, à figura geral do ser humano que usa o intelecto junto à sua arte para moldar a natureza à sua necessidade.


Há outro episódio da obra em que Odisseu também está em uma ilha longínqua, a ilha dos ciclopes – monstros de tamanho e força descomunal que possuíam apenas um olho no meio da testa. Odisseu os descreve como “arrogantes e sem lei... vivem nos píncaros das altas montanhas em grutas escavadas, e cada um dá as leis à mulher e aos filhos. Ignoram-se uns aos outros” (Odisseia, Canto IX, 106-115). Mais uma vez o texto nos convida a ultrapassar a imagem literal no momento em que nosso herói se depara com a gruta de um dos habitantes da ilha, Polifemo, filho do deus Posidon.


Odisseu, rei, provedor e legislador de seu palácio em Ítaca, homem capaz de controlar seus instintos através do intelecto, conhecedor e respeitador de leis humanas e divinas, homem que vive em sociedade. Polifemo, habitante de uma gruta, ser que devorou os companheiros de Odisseu, impulsivo, desconhecedor de leis humanas e desprezador das leis divinas, legislador individual de sua família: é o choque entre o homem ideal habitante do mundo homérico e o ser que habita para além das fronteiras desse mundo.


Executando um ardil, Odisseu declara que se chama “Ninguém”, quando questionado por Polifemo acerca de seu nome, para além da interpretação literal desse trecho, o fato de Odisseu negar sua identidade particular abre margem para o enxergarmos mais uma vez como uma representação. Sem uma identidade particular, nosso herói nega as características que fazem dele o Odisseu e nos leva a olhar para suas características gerais, nos leva a perceber as características que o identificam como ἀνήρ3 , que o identificam como habitante do mundo homérico.


“Fala-me, Musa, ἄνδρα πολύτροπον”. Essa, uma parte do verso inicial da Odisseia, é a identidade da obra, lembremos que a obra original não possui título. O verso prenuncia que falará não de Odisseu em particular, mas do ἀνήρ, do varão Aqueu, do homem que rege os palácios do mundo Homérico. Odisseu figurará como símbolo desse ἀνήρ, ora sendo ele mesmo o ideal, ora sendo figuradamente uma representação. Portanto, apesar de ser cabível o título Odisseia, devemos atentar para o verso inicial, pois é a chave para percebermos o que está além da imagem literal descrita nos versos dessa obra fundamental.


Paulo Diego

Graduando em Letras Clássicas pela UFPB

paulo.diegorb@gmail.com


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