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A oralidade na Grécia Arcaica e as Musas hesiódicas

  • Lívia Silva
  • 18 de jan. de 2017
  • 3 min de leitura


Antes de entendermos os clássicos Teogonia, de Hesíodo e Ilíada e Odisseia, de Homero, precisamos entender as marcas culturais do universo em que estas obras estão inseridas. Sendo assim, vamos aqui refletir sobre a questão da oralidade, lançando vista à tradição de uma época anterior à adoção da escrita e observando a concepção da oralidade dos gregos antigos em oposição à nossa atual concepção.


A diferença entre tais concepções é a do poder que os povos ágrafos sentem na força da palavra – que pode ser entendido a partir da tradição hesiódica, inserida numa cultura que não dissocia a palavra do canto.


Considerando que, na cultura grega arcaica, é através do canto que se mantém a relação entre o nome e a coisa nomeada, observamos que poder especial é depositado na pronunciação das palavras, de modo que a existência da coisa se dá pela sua nomeação, não havendo distinção entre canto recreativo e canto religioso. Essa concepção se manteve ao longo dos tempos, ainda que perdendo, aos poucos, a noção religiosa. Um exemplo disso é a utilização dos nomes Eumênides, Benevolentes e Benfazejas para se referir às Erínias, “instrumentos da vingança divina em função da hýbris”, como forma de evitar invocar a presença destruidora destas divindades.


Apesar de chegar para nós de forma escrita, a poesia de Hesíodo está inserida nesse contexto de tradição oral, tendo sido produzida oralmente e, apenas séculos mais tarde, transferida para a escrita – o que possibilitou a propagação da concepção religiosa e a manutenção da tradição. Tal tradição se manifesta por meio da invocação às Musas, como personificação do canto e de outras atividades artísticas/científicas, quer seja pela função de rememoração, de desencobrimento da verdade ou de presentificação dos fatos.


Pela propagação dessa crença, a recorrência das invocações às Musas na literatura clássica foi de grande peso, de modo a influenciar as literaturas modernas, como é o caso, por exemplo, de Dante, que se inspira em Virgílio, e que também invoca a função de rememoração:


Ó musas e alto engenho, me ajudai;

ó mente que escreveste do que vias,

tua nobreza aqui provar-se vai (DANTE, II, 7-9).


A grande recorrência de invocações fez com que elas passassem a ser vistas como mero recurso poético, deixando-se de lado o aspecto religioso. Como exemplo disto, se tem a primeira estrofe da Ode III, 1, de Horácio, produção escrita que se baseia nas noções de tradição oral. O que deve se observar aqui é que na época de Horácio o canto já passou por um processo de laicização, no entanto, o poeta utiliza-se da invocação às Musas como recurso poético para trazer de volta as noções religiosas arcaicas.


Há, nesta estrofe de Horácio, um Musarum sacerdos (sacerdote das Musas) que irá entoar seu canto divino, com o propósito de chamar atenção para o caráter religioso e ético dos romanos, carente de ser restaurado na Roma do séc. I d.C. Assim, a referência feita às Musas, de modo a colocar o eu como seu servo/sacerdote, fortalece a autoridade e o caráter persuasivo de seu canto, pois atesta seu comprometimento para com estas divindades e a consequente responsabilidade que tem para com o que será proferido.


Assim, comecemos por pensar na palavra grega Μουσα (Musa), que designa, entre outras coisas, o próprio canto. Segundo a tradição literária de Hesíodo, o canto (as Musas) é originado a partir da titânida Memória, em união com Zeus. Assim, encontramos no mito a ideia da linguagem como manifestação divina e, portanto, força presentificadora de fatos passados e futuros.


Enquanto a descendência das Musas por Memória nos mostra essa noção de uma consciência plena de fatos ocultos e revelados, que nos remete à verdade e ao poder de manifestar Presença, sua descendência por Zeus, Poder soberano entre os deuses, nos remete ao poder do canto proferido, conservando as características paternas de justiça e soberania.


É pela noção mítica da linguagem como manifestação divina que acontece o surgimento das coisas, pois é o Canto que possibilita o surgimento de forças numinosas pela sagrada relação que o nome tem com a coisa nomeada. E é a partir dessa noção que podemos compreender a importância dada à coisa proferida: porque o dizer é instrumento de criação, o proferir é atribuir nome à coisa, e nomear a coisa é trazê-la do desconhecido para o conhecido.



Referências Bibliográficas


BRANDÃO, Jacyntho Lins. 2000. As Musas ensinam a mentir (Hesíodo, Teogonia, 27-28). Ágora. Estudos Clássicos em Debate 2: 7-20.


DANTE, Alighieri. A divina comédia. São Paulo: Editora Landmark, 2005.


TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas: I. Discurso Sobre Uma Canção Numinosa; II. Ouvir Ver Viver a Canção; III. Musas e Ser e IV. Musas e Poder. In: Teogonia - A origem dos Deuses. São Paulo: Illuminuras, 1991.


Lívia Silva

Graduanda em Letras Clássicas pela UFPB

ufpb.livia@gmail.com



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