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Eros além do amor romântico: uma força fundamental do cosmos

  • Danusia Oliveira
  • 6 de fev. de 2017
  • 4 min de leitura

Representação de Eros, figura vermelha, 450-470 a.C

"Muito antigo, perfeito em si mesmo e muito sábio, o Amor."

(Orfeu, Argonáuticas, 424)

O deus do amor, que maliciosamente dispara flechas do seu arco dourado provocando tal sentimento em deuses e homens, em sua razão verdadeira se mostra muito além desse amor romântico. Eros é, em sua essência, a força cósmica de fecundação que preside a união dos elementos discordantes do universo. Assim diz o fragmento de As Danaides de Ésquilo:

“O Amor (Eros) de acasalar-se domina a Terra.

Ama o sagrado Céu penetrar a Terra.

A chuva ao cair de seu leito celeste

fecunda a terra, e esta para os mortais gera

as pastagens dos rebanhos e os víveres de Deméter.”

(Tradução de Jaa Torrano)

Nas mais antigas teogonias, Eros é considerado um deus nascido ao mesmo tempo que a Terra, logo depois do Caos primitivo, e vindo a existir por si mesmo. Os deuses primordiais da mitologia grega são chamados de Protógonos (grego Πρωτόγονος - primeiro a nascer), e suas representações formam a estrutura básica do universo.


Para compreender corretamente os antigos devemos fazer uma distinção de Eros: o Eros da antiga cosmogonia, o Eros dos filósofos e o Eros que encontramos com os poetas epigramáticos e eróticos, cujas descrições espirituosas e lúdicas do deus, no entanto, dificilmente podem ser consideradas como uma parte da antiga tradição mítica dos gregos.



Fanes eclodido do ovo cósmico e circundado pelo zodíaco.  Baixo relevo Greco –Romano, século II d.C.

Hesíodo, o autor mais antigo que o menciona, descreve um Eros cosmogônico, uma divindade primordial que emerge realizado no início dos tempos para estimular a união. Em primeiro lugar, diz Hesíodo em sua Teogonia (vv. 116-121), houve Caos, então veio Gaia, Tártaro e Eros “solta-membros dos deuses todos e dos homens todos, ele doma no peito o espírito e a prudente vontade”.


Afrodite e Eros. Afresco do império romano, século I d.C

Na poesia órfica há uma equiparação do deus Eros com o deus Fanes (em grego: Φάνης, "luz"), aos dois deuses são incorporados os mesmos aspectos, em que há uma descrição comum de deus primordial nascido a partir do ovo cósmico, engendrado pela Noite, que, em duas metades, faz a Terra e o Céu, uma representação da força motriz por trás da reprodução no início do cosmos.

Outros mitos foram imaginados a respeito de Eros, atribuindo-lhe genealogias diferentes, mas a tradição mais divulgada o faz filho de Afrodite e Hermes. O próprio Hesíodo na sequência da Teogonia (v. 201) descreve dois deuses do amor, Eros e Himeros (Desejo), que acompanham Afrodite no momento de seu nascimento a partir da espuma do mar. Eros foi multiplicado por poetas antigos e artistas em uma série de Erotes. Essas figuras de Eros simbolizam as diferentes formas que o amor pode tomar. O Eros singular, no entanto, permaneceu distinto no mito.


Pouco a pouco, sob a influência dos poetas, Eros foi tomando sua fisionomia tradicional, um pequeno arqueiro alado, companheiro habitual de sua mãe Afrodite; passou, também a ser associado ao amor romântico na época helenística e, mais tarde, os romanos o identificam com Cupido. Ele se torna puramente o deus do amor sensual, que tem influência sobre os habitantes do Olimpo, bem como sobre os homens e todas as criaturas vivas. Mas já em Safo de Lesbos podemos apreciar esse deus regente do desejo que avassala todos os seres:



“Eros sacudiu o meu coração, como um vento que,

descendo a montanha, se lança sobre os carvalhos.”

(Tradução de Manuel Pulquério, fr. 50 D)

Mas aqui nos interessa a tradição mais antiga que se harmoniza com as reflexões posteriores dos filósofos. No Banquete de Platão, por exemplo, Eros é objeto de vários elogios, mas o de valor filosófico, reproduzido por Sócrates, surge da sábia Diotima. Esta, descrevendo a natureza de Eros, fala sobre um Amor nem mortal, nem imortal; nem pobre, nem rico; nem divino, muito menos humano; nem belo, nem bom. Segundo a sábia, a condição do Amor é sempre intermediária. Diotima diz que é por estar no meio, entre a ignorância e o saber, que o amor é filósofo:

"Nenhum dos deuses se dedica à Filosofia nem deseja ficar sábio – pois isso eles já são. Por outro lado, os ignorantes também não se dedicam à filosofia nem procuram ficar sábios. A ignorância apresenta esse defeito capital: é que, não sendo nem bela, nem boa, nem inteligente, considera-se muito bem-dotada de todos esses predicados. Quem não sente necessidade de alguma coisa, não deseja vir a possuir aquilo de cuja falta não se apercebe. ” (204 A)

"A sabedoria é o que há de mais belo. Ora, sendo Eros amante do belo, necessariamente será filósofo ou amante da sabedoria, e, como tal, se encontra colocado entre os sábios e os ignorantes." (204B)

Para a sábia, Eros está consciente da carência e aspira, com todo o seu ser, preenchê-la:

"O amor, em resumo - arrematou - é o desejo de possuir sempre o

bem”.(205A)

Seu verdadeiro objeto é a conservação e a reprodução da vida e não apenas de uma vida corpórea, mas também da vida intelectual:

"Os fecundos na alma... Sim, porque há também pessoas - me falou -,

cuja força fecundante reside na alma, muito mais ativa do que a do

corpo, com relação às coisas que convém à alma conceber e procriar.

E que lhes convém conceber? A sabedoria e as demais virtudes." (209 A)

Mostrando que não se trata apenas de amor no sentido do senso comum, mas de uma ânsia pela busca da sabedoria, a sábia mulher nos ensina que, quem tiver sido levado pelo caminho do amor, após a contemplação gradativa e regular das coisas belas, já próximo da meta final do conhecimento amatório, perceberá de súbito uma beleza de natureza maravilhosa.


E percebamos: um Eros, de potência cosmogônica, que trouxe ordem e harmonia entre os elementos conflitantes de que o Caos consistia; um Eros, da filosofia, agente impulsionador e ativador da sabedoria e das virtudes, que propiciam um equilíbrio entre os desejos e o império dos prazeres. Eros permanece uma força fundamental do cosmos.


Graduanda em Letras Clássicas pela UFPB

danusia-oliver@hotmail.com

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