top of page

Musarum sacerdos

  • Foto do escritor: Jardim de Academo
    Jardim de Academo
  • 11 de abr. de 2017
  • 5 min de leitura

As unidades de armazenamento de informação são de extrema importância para todos nós. São elas que estabelecem uma ordem dos fatos e nos possibilitam transmitir conhecimento para as gerações posteriores, contribuindo, assim, para a nossa história e para nossa evolução intelectual e cultural. Nos dias atuais, dispomos de várias formas de armazenamento de informações, dentre elas, a internet. Porém, antes do acesso à internet, o livros eram a forma mais utilizada. Mas o que ocorria antes dos livros, antes da escrita? Será que os povos anteriores ao estabelecimento da escrita não tiveram o direito de propagar sua história? Como a contemporaneidade atingiu informações anteriores à escrita?


As respostas para tais perguntas giram todas em torno de uma importantíssima figura na Grécia arcaica: o aedo. É o aedo que, nessa cultura, se responsabiliza por transmitir as histórias, os valores, as técnicas, a educação. Tudo isso por meio do canto. Para isso, os aedos contavam com vários recursos miméticos de produção do canto, de modo que eram capazes de recordar de diversas narrativas, de extensões variadas.


Mas é claro que tal faculdade de rememorar-se das narrativas é atribuído às Musas, filhas de Memória, e daí a importância de chamar às divindades e deixar-se por elas serem possuídos. E é exatamente por isso que poetas épicos como Homero, Hesíodo, Virgílio, Dante, Camões… irão invocar às Musas nos proêmios de suas obras.


No texto anterior, A oralidade na Grécia Arcaica e as Musas hesiódicas, faço menção a um Musarum sacerdos (sacerdote das Musas), presente na Ode III, 1, de Horácio. Hoje, venho expor o que é esse Musarum sacerdos, quer na ode de Horácio, quer na tradição grega arcaica.


No referido texto, vimos que o poeta Horácio, apesar de estar inserido numa época em que já vigorava uma certa laicização da palavra proferida, constrói uma ode que, por apelar à observância e à prática dos costumes tradicionais romanos (ou seja, o mos maiorum, sobre o qual podemos tornar a falar noutro momento), reveste-se de uma religiosidade arcaica – isso, claro, para fortalecer seu tom persuasivo, já que direciona seu sermão ao povo romano desviado dos princípios morais tradicionais. Vejamos a estrofe um, na qual a expressão aparece:


Odi profanum uolgus et arceo

Fauete linguis: carmina non prius

audita Musarum sacerdos

uirguinibus puerisque canto


Abomino o vulgo profano e o rechaço

Favorecei com silêncio: as canções antes não

ouvidas eu, sacerdote das Musas,

às virgens e aos jovens canto (Horácio, Ode III, 1, v. 1-4)


Ora, vimos que as Musas são responsáveis pela rememoração e presentificação dos fatos e têm sua origem na Grécia Antiga, a partir de uma cultura de tradição oral, em que a poesia era transmitida através do canto, pelos chamados aedos. Assim, na ocasião do canto, as Musas eram invocadas e conferiam poder e teor de verdade à palavra proferida/cantada pelo poeta inspirado, o que justifica o teor místico do canto nessas culturas.


Sendo assim, percebamos que ao se intitular Musarum sacerdos, Horácio toma para si a posição de aedo, a posição de inspirado pelas Musas. E tomar para si tal posição significa investir-se do poder da providência, da previsão, do poder do proferir verdades; e é esse poder que lhe possibilita abominar e rechaçar aqueles que se distanciaram dos valores que ele quer reconstituir.


Desse modo, o aedo, poeta escolhido e inspirado pelas Musas, atua como instrumento das divindades e incorpora as característica do cantar que presentifica fatos e põe termo aos males, com a justiça de Zeus, entoando cantos divinos (pela relação com Memória) e mantendo sua autoridade (pela relação com Zeus), assim como nos mostra Hesíodo:


“A quem honram as virgens do grande Zeus

e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,

elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho

e palavras de mel fluem de sua boca. Todas

as gentes o olham decidir as sentenças

com reta justiça e ele firme falando na ágora

logo à grande discórdia cônscio põe fim,

pois os reis têm prudência quando às gentes

violadas na ágora perfazem as reparações

facilmente, a persuadir com brandas palavras.” (Teogonia, 81-90)


A autoridade do aedo/poeta não se restringe à sua relação com Zeus, mas estende-se à responsabilidade que ele tem ao proferir verdades/revelações por meio do canto. No entanto, todo o poder do canto é atribuído às divindades, e ele representa o receptor do dom divino pelo qual poderá cantar tais revelações aos seus ouvintes, atuando, portanto, como um intermediário entre os planos divino e mortal.


“Nas invocações à Musa, os aedos pedem à deusa da memória e do canto que os assista, contando-lhes as histórias que desejam narrar. Assim, é atribuída à poesia uma origem divina e o aedo alega ser, não o autor dos versos que apresenta, mas simplesmente um porta-voz das Musas, que falariam por meio dele.” (KRAUSZ, 2007, p. 49)


No contexto da ode de Horácio, o Musarum sacerdos irá entoar seu canto divino com o propósito de chamar atenção para o caráter religioso carente de ser restaurado e, para isso, busca convencer o vulgo romano a reconhecer as práticas ancestrais de respeito e comprometimento para com os deuses e a pátria (mos maiorum).


O fato de o eu se manter distante, rechaçar o vulgo profano – a massa corrompida em caráter – o aproxima ainda mais das divindades, pois o mantém puro de qualquer desvirtuamento dos valores e de vícios de caráter. Assim, a referência feita às Musas, de modo a colocar o eu como seu servo/sacerdote, fortalece a autoridade e o caráter persuasivo de seu canto, pois atesta seu comprometimento para com estas divindades e a consequente responsabilidade que tem para com o que será proferido.


O que pretendo mostrar com esses textos que circundam a oralidade, é que a presença da religiosidade no canto se dá pela relação que o nome tem com a coisa nomeada, porque “toda a magia está na palavra e essa palavra pronunciada cabalisticamente¹ é mais forte do que todos os poderes do Céu, da Terra e do Inferno”².


________ Notas:


¹ Cabalisticamente: A utilização desse termo nesta citação reforça o que diz a teoria de Austin, que vamos apresentar no capítulo “O aspecto performativo do canto”, no que diz respeito ao sucesso do aspecto performativo depender de a palavra ser proferida em circunstâncias próprias de enunciação e por alguém detentor do poder necessário para tal, ou seja, de modo solene, ritualístico, cabalístico.

² Eliphas Lévi. In: “Lógos”. Nevill Drury. Dicionário de Magia e Esoterismo, Editora Pensamento-Cultrix, São Paulo: SP.


Referências bibliográficas


CALAME, Claude. 2005. Entre narrativa heróica e poesia ritual: o sujeito poético que canta o mito. Letras Clássicas 9: 47-65.

DRURY, Nevill. o Dicionário de Magia e Esoterismo. São Paulo: Editora Pensamento, 2011.

HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2012.

KRAUSZ, L. S. Invocação e Culto às Musas. In: As Musas: Poesia e Divindade na Grécia Arcaica. EdUSP, 2007.

SANTOS, Fernando Brandão dos. O canto dos helenos: poesia e performance. Clássica 25: 231-248.

TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas: I. Discurso Sobre Uma Canção Numinosa; II. Ouvir Ver Viver a Canção; III. Musas e Ser e IV. Musas e Poder. In: Teogonia - A origem dos Deuses. São Paulo: Illuminuras, 2012.


Lívia Silva Graduanda em Letras Clássicas pela UFPB ufpb.livia@gmail.com FAÇA O DONWLOAD DO TEXTO AQUI.


 
 
 

Comments


bottom of page